Rede de apoio acolhe mulheres que sofrem violência em Campo Largo
Em média, dez mulheres sofrem algum tipo de violência por dia na cidade. O número foi fornecido pelo coletivo “Juntas Somos Mais”, que atende as famílias oferecendo apoio pedagógico, jurídico e psicológico, além de cursos profissionalizantes
Em tempos de cólera, muito se conversa sobre intolerância e as razões para tantos casos de violência no Brasil, principalmente contra a mulher. E não é de hoje que o Sindimovec denuncia esse problema em Campo Largo. Tanto é verdade que em todas as entrevistas sobre esse tema, dentro do projeto “Perfil dos Trabalhadores”, uma máxima se confirma: as mulheres da cidade estão desprotegidas.
“Vivemos numa cidade em que o sistema patriarcal é muito presente, vemos isso como normal, mas temos sempre que lembrar que o machismo não é normal. Aí nossa postura diante de qualquer coisa que diz respeito a isso já faz com que a gente sofra certas ameaças” – Fabiana Portes.
Para entender melhor sobre o assunto, conversamos com um coletivo de profissionais que criou o projeto “Juntas Somos Mais”. O trabalho faz parte do Instituto Árvore da Vida e busca atender e fortalecer as mulheres em várias frentes, além de estruturar o seguinte tripé: atuar na questão psicológica, fazer orientação jurídica e pedagógica (AQUI o acesso a page no face do “Juntas Somos Mais” com todos os serviços e novidades).
Para isso, Karla Knauber (bacharel em Direito formada no CNEC), Fabiana Portes (psicanalista formada pelo IBP) e Charize Portela (pedagoga formada na Unopar), começaram a ouvir mulheres vítimas de violência em Campo Largo e criaram uma rede de apoio. Hoje, elas estão em contato direto com diversas famílias.
Oficialmente o projeto começou em março deste ano. Porém, há três anos, paralelo aos trabalhos acadêmicos de Karla e Fabiana, amigas de longa data, pontos similares em relação ao combate à violência doméstica e à autonomia da mulher ajudaram a dar corpo ao que depois se tornou o “Juntas Somos Mais”.
Foi assim que surgiu a ideia de unir teoria e prática. E para completar o tripé que forma o núcleo do coletivo, chegou Charize, que é pedagoga.
“Quando nós identificamos que realmente a cidade não tinha praticamente nada voltado a mulher, com exceção das redes ligadas a administração pública, começamos os trabalhos. Tivemos sorte de conhecer pessoas que nos deram apoio para nos desenvolver” – Karla Knauber.
Autonomia, fortalecimento, família e profissionalização
Durante a conversa, um consenso entre as três profissionais é que, para quebrar o ciclo violento dentro da família, a mulher precisa de autonomia. E isso não passa exclusivamente por questões econômicas, mas também pelo aspecto cultural e profissional. Outro ponto é que, numa estrutura complexa como são as famílias de uma maneira geral, também é preciso dar atenção aos filhos dessas mães.
“Temos um cuidado especial com as crianças. Temos uma forma lúdica de atuar com os filhos. Porque, às vezes, eles ficam agressivos na escola e esses relatos chegam até nós” – Charize Portela.
E para dar conta de trabalhar nos três eixos já apontados, o núcleo do projeto faz o acolhimento dessas mulheres e posteriormente o encaminhamento aos atendimentos necessário. Elas ainda contam com a parceria de inúmeros voluntários para ter uma atuação permanente. Assim, Charize, Karla e Fabiane estão sempre em contato com as famílias.
“Primeiro ouvimos. Procuramos saber como é essa mulher que está conosco, como é sua vida familiar, se tem filhos, se eles estão na escola, se ela trabalha, etc. Assim sabemos quais os riscos e a necessidade dela. Após isso, encaminhamos aos parceiros voluntários” – Karla Knauber.
Mas dentro de toda essa complexidade, uma coisa que é tratada com cuidado especial é a profissionalização. Há cursos de capacitação (logo) e recentemente foi firmada parceria com uma terapeuta e demais cursos como yoga, jiu jutsu, contraturno escolar e ainda com previsão de trazerem ao projeto escotismo e rugby.
“A mulher e sua família precisam de alicerces para sair da situação de violência. Por isso trabalhamos ponto por ponto. A gente acredita também na autonomia financeira, pois a grande maioria das mulheres nessa condição é dependente e nós queremos romper isso” – Fabiana Portes.
A palavra autonomia sempre está presente no projeto, que não tem vínculo com o poder público. O trabalho é na base, no fortalecimento, para que quando uma mulher vá à delegacia fazer uma denúncia, por exemplo, não se sinta sozinha e consiga um laudo ou uma medida protetiva.
Alguns relatos
“Na delegacia há uma exposição muito grande. Quando uma mulher chega nesse ponto ela está no limite. Temos o relato de uma das nossas assistidas que apanhou durante dez anos de sua vida e no dia que ela resolveu ir à delegacia foi quando apanhou das nove da noite até seis da manhã” – Fabiana Portes.
Além disso, há outra tipo de violência que é comum e que muitas vezes faz com que a mulher sofra em dose dupla, digamos assim. Trata-se da agressão psicológica, onde a pessoa sofre com agressões e desqualificações diárias dentro de casa, coisas do tipo “você não presta pra nada”, “ninguém vai te querer”, etc.
“Isso também dói e é agressão. Aí quando a mulher chega à delegacia e vai contar o que aconteceu, explicar que o parceiro grita com ela, as pessoas não levam aquilo como agressão. Aí ela é, de novo, desqualificada. Hoje, para se levar a sério uma denúncia, só quando a mulher apanha muito” – Fabiana Portes.
A verdade é que a violência está ao nosso redor:
“Uma das assistidas que nos procurou e fez todo acompanhamento participava de uma igreja em Curitiba. Ela não se sentia a vontade para expor o que acontecia com ela dentro da igreja ou para com os outros integrantes. Não queria que ninguém soubesse o que estava passando, pois temia ser discriminada. A discriminação é um dos pontos que faz com que as mulheres temam se abrir” – Karla Knauber.
“Temos relatos de agressões físicas leves e intensas. Já teve situação que um rapaz quebrou o braço de uma assistida. Houve caso de esfaqueamento, em que a mulher acabou no hospital e, quando amigos do trabalho tentaram tirar ela de casa, os próprios familiares a fizeram voltar com o agressor” – Karla Knauber.
“A gente trabalha com a criança no lúdico. Através da pintura, dos jogos e do desenho. Cada traço, cada movimento, a gente percebe que a criança tá passando por um sistema que não é formal. Então, tentamos, junto com a mãe e muitas vezes junto com a escola, através dos jogos e das conversas, dependendo da idade, identificar algumas atitudes. Muitas vezes as pessoas pensam que a criança tá fazendo birra, mas, dependendo da situação, não é. Acontece de aluno responder a professora, se isolar e brigar muito. Ajudamos trabalhando através da música, na relação com a arte e com a história” – Charize Portela.
Machismo: cultural e institucionalizado
Que o machismo é cultural, não é novidade. Agora, como quebrar esse ciclo presente em todas as esferas da sociedade?
“Hoje nós estamos aqui numa luta constante pra quebrar esse estigma, porque não há um conhecimento histórico sobre isso. Aí se equipara o machismo ao feminismo e uma coisa não tem nada a ver com a outra. Por isso a luta é constante. A mulher sofre represália o tempo todo, dentro de casa, com pai, com irmão, com avô, com filho e com o marido, porque tudo faz parte da nossa cultura. E o que temos que fazer o tempo todo é quebrar esse estereotipo” – Fabiana Portes.
Essa quebra de barreiras vai muito além do atendimento à mulher. A violência institucionalizada nas famílias faz com que as agressões perdurem para outras gerações.
“Quando tem agressão na família, tanto meninos quanto meninas se tornam agressivos. Isso acontece muito com a própria mãe, é o que chamamos de mãe narcísica (quando ela passa a cometer agressões nos filhos inconscientemente); é uma questão de hierarquia doméstica. E família é abraço, amor e acolhimento. Infelizmente a agressão familiar está muito presente e acontece em todos os níveis” – Fabiana Portes.
No fim da conversa, uma coisa ficou clara: toda ajuda é bem vinda. A ideia é que as pessoas não se calem. Façam denuncias. Procurem ajuda. Se voluntariem.
“O verdadeiro olhar do empoderamento feminino é trazer autonomia para a mulher. É esse o nosso trabalho. Acho que toda mulher tem uma história em relação a assédio. Infelizmente eu não converso com uma mulher, ou dentro da academia ou na universidade, que não tenha passado por algo assim. Outro dia, conversando abertamente com uma mulher, ela me disse: o machismo é normal” – Fabiana Portes.
A mensagem que fica é que a sociedade não pode tratar a violência como algo banal.
Texto e Fotos: Regis Luís Cardoso (com informações: Juntas Somos Mais).