Constituição de 1988: o direito e o avesso

A Carta Magna consagrou formalmente vários avanços, sobretudo no campo dos direitos e garantias fundamentais. Ademais, instituíram-se instrumentos jurídicos de democracia direta e participativa, como um complemento necessário à representação popular. Acontece que tais avanços se revelaram, em sua maior parte, inefetivos.

A Constituição de 1988, como todas as anteriores aqui promulgadas, tem duas espécies de vigência: a oficial e a efetiva.

Esse dualismo é fruto da discordância entre, de um lado, o corpo de normas jurídicas promulgadas e, de outro lado, a realidade social. Nesta, prevalecem os dois elementos estruturantes de toda sociedade política, ou seja, o poder de dominação e a mentalidade coletiva; vale dizer, o conjunto dos valores e costumes sociais preponderantes no meio social. Ora, tais elementos estruturantes de nossa realidade social sempre entraram em manifesta contradição com o ordenamento jurídico oficial.

Desde o Descobrimento, a soberania efetiva pertence, sem descontinuar, a dois grupos sociais intimamente ligados: os potentados econômicos privados e os grandes agentes estatais. Eles formam um regime oligárquico totalmente alheio ao povo. A mentalidade popular sempre foi marcada pelo espírito de sujeição, suscitado por um regime escravocrata, que durou quase quatro séculos.

Eis por que, no período colonial, as Ordenações do Reino e outros comandos régios eram aqui recebidos como normas totalmente estranhas ao nosso meio. Vigorava então no Brasil o mesmo princípio estabelecido costumeiramente na América espanhola: las ordenanzas del Rey Nuestro Senõr se acatan, pero no se cumplen.

Proclamada a Independência, nossas Constituições seguiram, quase todas, os modelos vigentes nos países ditos civilizados. O objetivo era demonstrar que nossos grupos oligárquicos já constituíam uma “elite culturalmente avançada”.

Infelizmente, no caso da atual Constituição, essa ficção jurídica foi levada ao extremo. Promulgada após mais de vinte anos de um regime empresarial-militar, responsável pelo cometimento de milhares de crimes contra a humanidade, crimes esses que nossa mais alta Corte de Justiça entendeu anistiados pela lei de 1979, a nova Carta Política foi saudada como a “Constituição cidadã”. Em 1988, porém, ninguém teve a argúcia e a coragem de reconhecer que a velha dominação oligárquica permanecia intocada e que o restabelecimento do regime democrático era mero embuste.

Sem dúvida, a atual Constituição consagrou formalmente vários avanços, sobretudo no campo dos direitos e garantias fundamentais. Ademais, instituíram-se, pela primeira vez em nossa história política, instrumentos jurídicos de democracia direta e participativa, como um complemento necessário à representação popular.

Acontece que tais avanços se revelaram, em sua maior parte, inefetivos. Em matéria de direitos e liberdades individuais, por exemplo, a Constituição determinou, enfaticamente, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). Impossível, no entanto, ocultar que a tortura continua a ser sistematicamente aplicada nas delegacias de polícia, especialmente contra pobres e negros. Recentemente, aliás, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos reconheceu que o Brasil enfrenta um “problema gigantesco” de violência policial.

Já no tocante à soberania popular, a Constituição declara que ela será exercida pelo sufrágio universal, bem como mediante plebiscito, referendo e iniciativa popular (art. 14). Mas o funcionamento dessas instituições de democracia direta é totalmente bloqueado, ao declarar a Constituição em seu art. 49, inciso XV, que “é da competência exclusiva do Congresso Nacional convocar plebiscito e autorizar referendo”. Ou seja, o povo soberano somente poderá manifestar diretamente sua vontade política quando autorizado por seus representantes oficiais… Como se vê, criamos uma espécie original de mandato político, no qual o mandante se submete ao poder do mandatário. Rousseau, de resto, já havia advertido que a soberania política não admite representação: ou o soberano a exerce diretamente, ou simplesmente a aliena.

Se passamos para o campo da democracia social, verificamos que a Constituição assinala como um dos “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III). Recentemente, porém, pela análise das declarações tributárias e não mais por meio de pesquisas domiciliares (o Pnad), verificou-se que a parcela mais rica e ultraminoritária de nossa população (3,6%) concentra 37,4% da renda nacional, contra 13,6% das classes mais pobres, que representam mais da metade (53,5%).

No art. 6º da Constituição, são declarados como direitos sociais “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”.

Acontece que, salvo em matéria trabalhista, as garantias fundamentais de tais direitos não são de natureza judicial; são políticas públicas, ou seja, programas de ação estatal, cuja realização pressupõe a disponibilidade de recursos financeiros adequados. Ora, assim que promulgada a Constituição, a União Federal promoveu, inclusive mediante emendas ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (o que é uma flagrante aberração), a sucessiva redução de tais garantias financeiras sob a forma de Desvinculação de Receitas da União (DRU).

Para superar essa contradição entre o direito oficial e a realidade social, entendo indispensável concentrar os esforços de mudança nos dois elementos estruturantes de toda sociedade, anteriormente indicados: o poder de dominação e a mentalidade coletiva.

Quanto ao poder de dominação, o que importa é dar efetividade à soberania popular, destravando os instrumentos de democracia direta ou participativa, oficialmente consagrados na Constituição, a saber, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Nesse particular, já existem no Congresso dezenas de projetos de lei, inclusive um de 2004 que tive a honra de redigir em nome do Conselho Federal da OAB, todos eles com tramitação bloqueada.

Já em matéria de mentalidade coletiva, para dar início a um processo de mudança é preciso formar a consciência popular no respeito aos grandes valores éticos da vida política. Numa sociedade de massas, como a atual, esse trabalho de educação cívica somente terá êxito se feito pelos meios de comunicação de massa. Tal setor, porém, acha-se hoje submetido ao controle de um oligopólio empresarial que vem impedindo sistematicamente o Congresso Nacional de regular por lei o cumprimento das normas constitucionais sobre comunicação social – notadamente a que proíbe, direta ou indiretamente, o monopólio e o oligopólio dos veículos de comunicação. Em 2011 ajuizei no Supremo Tribunal Federal, em nome de um partido político, uma ação de inconstitucionalidade por omissão a esse respeito. Acontece que, encerrada a instrução do processo em maio de 2012, a ministra relatora permanece com os autos conclusos, sem pedir sua inclusão na pauta de julgamentos.

Como se vê, a solução do problema não se dará a curto prazo.


Fábio Konder Comparato

é doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, doutor em Direito da Universidade de Paris, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e presidente da Comissão Nacional de Defesa da República e da Democracia da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). (Fonte: fetraconspar.org.br)

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