Comemorar ditadura jamais!

Momento confuso. O Brasil de 2019 nunca se pareceu tanto com outros ‘brasis’. De tempos distantes, por sinal. De péssima lembrança, pra falar a verdade. Um país que se vê dormente diante de um ‘novo’ governo, foi o que disseram as propagandas eleitorais, que na prática se mostra velho. Os indícios são muitos: precarização do trabalho, retirada de direitos dos mais pobres, desemprego, previdência privada e, pasmem, orientação para que se comemore a ditadura militar nas forças armadas!

Não é a intenção avançar em cada ponto errático desse governo incapaz de fazer articulação política. Na verdade, quem esperava algo diferente vindo de um político que, em 27 anos no legislativo, se mostrou desde sempre um reacionário?  

Diante desse cenário, algo chamou ainda mais minha atenção: a questão da “comemoração da ditadura”. Sim! O atual presidente da república orientou as forças armadas a, se quiserem, comemorar o golpe militar de 1964.

Foi assim que cheguei ao trabalho da advogada Janaína Alcântara Vilela (mestranda em Direito do Trabalho da PUC/MG; Pós-Graduada em Direito de Empresa pelo IEC – Institutos de Educação Continuada da PUC/MG; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Uniderpe Anhanguera).

O trabalho da advogada chama-se “O papel do direito do trabalho e dos sindicatos na época da ditadura militar”. O texto é oportuno, pois o direito do trabalho e os sindicatos, mesmo em 2019, voltaram a ser alvos de um governo extremamente conservador.

E a retórica continua tão antiga! Parece, mais uma vez, que estamos em 1964, quando deram um golpe em Jango. Naquela época também se usou o termo fantasmagórico: “ameaça comunista”. Não vou entrar no mérito do real significado do termo, a intenção desse texto é apenas falar um pouco sobre o sindicalismo e a ditadura, com a ajuda do trabalho da Janaína.

Vamos lá…

Falar de ditadura militar no Brasil é complicado. Foi nesse momento histórico que os militares conduziram o país. Colocaram em prática a censura, a perseguição política, a supressão de direitos constitucionais, a falta total de democracia e a repressão àqueles que se posicionassem contrários. Para a advogada Janaína Alcântara, “os direitos fundamentais naquela época sequer eram respeitados”.

E, após Bolsonaro autorizar militares a comemorar o golpe de 1964 em suas bases, torna-se ainda mais urgente lembrar, através da história, o papel dos sindicatos na ditadura militar.

Antes é preciso contextualizar: durante o dia 31 de março de 1964 João Goulart foi tirado da presidência, quem tomou o poder foi o Marechal Castelo Branco. O golpe militar durou até a eleição de Tancredo Neves (1985).A justificativa dos militares para o golpe de estado baseia-se na alegação de que havia uma ameaça comunista no país” (BORGES, 2009).

Com o Ato Institucional n.5 (AI5) se legalizou a repressão, “permitiu-se que o presidente da república pudesse cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos de qualquer cidadão que se mostrasse insatisfeito com o atual regime militar, além de se corroborar com o confisco de bens e a suspensão da garantia do habeas corpus” – Janaína Alcântara Vilela.

Repressão

A repressão no Brasil criou uma cultura do medo na qual coibiu a participação em atividades de oposição comunitária, sindical ou política. Esta cultura do medo tinha três importantes componentes psicológicos: o primeiro era o silêncio imposto à sociedade pela rigorosa censura. Tal silêncio imposto provocou um profundo sentimento de isolamento naqueles que sofriam diretamente a repressão ou exploração econômica. Parecia impossível enfrentar o poder do Estado. Um sentimento de total desesperança passou a prevalecer na sociedade. O silêncio, o isolamento e a descrença eram os fortes elementos da cultura do medo” (ALVES, 1985, p.205-206).

Durante a ditadura militar fazer denúncia era extremamente arriscado e uma das formas encontradas pelos familiares de pessoas presas ou desaparecidas foi o envio de cartas à imprensa. “A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), bem como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), apesar da polícia ditatorial e da censura, algumas vezes, conseguiu driblar a polícia e divulgar tais cartas dos desaparecidos” (DOSSIÊ DITADURA, 2009, p.620).

Sindicatos

Já no início do golpe de 1964 o governo de Castelo Branco (1964-1967) direcionou seus ataques diretos às entidades sindicais e a legislação sindical (direitos previstos na Consolidação da Legislação Trabalhista (CLT), vigente à época). Foi nesse período que as restrições às ocupações dos espaços sindicais aconteceram, sendo os candidatos a dirigentes investigados pelo Ministério do Trabalho e pela polícia política.

É bom salientar que mesmo com a garantia do direito de greve previsto em lei, na prática, as paralisações políticas e de solidariedade foram limitadas; passando a girar sobre mobilizações relativas aos salários atrasados.

O novo conceito do regime totalitário era indicar lideranças sindicais com atuação controlada previamente pelo estado. Para essas entidades, o governo tinha em mente tornar mais atrativa a filiação, fornecendo benefícios superiores aos dispostos na CLT de 1943. O objetivo dos militares era ter o controle absoluto dos sindicatos.

Foi durante o regime militar que o Ministro do Trabalho (Arnaldo Sussekind) autorizou eleições em todos os sindicatos com a seguinte “condição”: “vedado acesso aos sindicatos de todas aquelas pessoas que fossem contrárias ao pensamento do general Castelo Branco, impedindo-as de retornarem aos sindicatos via eleição” – Janaína Alcântara Vilela.

Reação

Dentro do movimento sindical se iniciou um trabalho de ocupação de espaço. Essas ações de dirigentes, em sua maioria de esquerda e ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), tinham o objetivo de impedir que as entidades de defesa dos trabalhadores passassem a atuar a serviço da ditadura militar.

Nesse período o papel do PCB foi fundamental, pois incentivou militantes a participar das eleições dos sindicatos, reuniões, organizações, confederações e congressos, sem colaborar com a ditadura.

Além disso, PCB acreditava que o sindicalismo era elemento chave de reativação do movimento operário: “trabalha no sentido desse retorno aos sindicatos, apesar dos limites a que estavam submetidos. Nesse embate, os militantes do partido comunista vão denunciar as pressões, as tentativas de aliciamento que os dirigentes sindicais mais combativos e honestos vinham sofrendo” (SANTANA, 2008).

Mas com forte repressão exercida pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) e pelo Serviço Nacional de Informação (SNI), que buscavam coagir ou ameaçar as atividades sindicais, enfraquecê-las e transformá-las em simples órgãos de caráter assistencial; as unidades dos trabalhadores se transformaram, através da ditadura, em agências de paz social.

Como reação, ainda em 1967, foi criado o Movimento Intersindical Anti-arrocho (MIA), que era composto por dois blocos. De um lado os sindicatos dos metalúrgicos de São Paulo, Santo André, Guarulhos e Campinas, que queriam manter a luta dentro dos limites do Ministério do Trabalho. Do outro a diretoria do sindicato dos metalúrgicos de Osasco, dirigido por José Ibrahim e setores da Igreja, que defendiam as lutas apoiadas nas comissões de fábricas e a criação de uma central sindical.

Relato de um Sindicalista:

O sindicato daquela época é que era sindicato de verdade. Isso que se tem hoje são meros grupos de associações de classe com um único objetivo de obter melhores salários. Naquela época não. Isso era diferente, pertencer ao sindicato tinha status entre os trabalhadores. Você era visto como pessoa importante diante dos outros trabalhadores e também diante dos trabalhadores dos outros Estados. Nós atuávamos na surdina, quando a repressão era muito grande, principalmente nos primeiros anos da ditadura. A polícia arrebentava com tudo. Ser sindicalista era o mesmo que ser comunista. Vários amigos meus nunca mais eu os vi. Fazíamos reuniões dentro das fábricas, após o expediente, no escuro, a luz de vela, sem o encarregado perceber, senão com certeza íamos ver o sol nascer quadrado. Isso, se sobrevivêssemos a surra da polícia da época. Mas, o sindicato era atuante, a gente discutia como íamos driblar o governo e conseguir melhorar a vida. Não só o dinheiro no final do mês. Mas, a gente lutava contra a injustiça. A gente queria um país mais igual, com comida e emprego para todos. A desigualdade naquela época era muito assustadora” – *Depoimento colhido através de entrevista realizada por Janaína Alcântara Vilela com sindicalista Dr. João (nome fictício) que atuou durante ditadura militar. Não foi permitido divulgar seu nome verdadeiro.

Metalúrgicos do ABC paulista

Vale lembrar que no final da década de 1970 o movimento sindical ganhou visibilidade no cenário brasileiro rompendo com os limites impostos pela ditadura. Foi nas mobilizações dos metalúrgicos do ABC paulista. As ações aconteceram logo no início do governo de Ernesto Geisel.

Indícios de reação: “A sociedade brasileira foi reconquistando seu espaço de participação política. Houve o surgimento de vários movimentos sociais nesta época que foram pavimentando o caminho para a redemocratização e que, por sua vez, aceleraram a crise do regime militar” (KRISCHKE, 1982, p. 34).

Assim, quando os metalúrgicos do ABC paulista entraram em greve em 1978, abrindo caminho para a paralisação que se seguiu em outras categorias, eles romperam com os limites estabelecidos pela lei anti-greve que tentava calar a classe trabalhadora. “Diante disso, eles conseguiram impactar alguns pilares de sustentação política e econômica da ditadura militar” (SANTANA, 2008).

O motivo que deflagrou a greve de 1978 foi a informação do Banco Mundial de que o regime militar de 1973-1974 havia maquiado os índices de inflação, mascarando o verdadeiro patamar do custo de vida do brasileiro. Manipulação dos militares que gerou um prejuízo salarial aos trabalhadores brasileiros em torno de 34,1%.

Com isso, o sindicato dos metalúrgicos, sob a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, começou uma campanha pela reposição salarial em busca daquilo que lhes havia sido tirado. A partir daí uma série de mobilizações, não só no ABC, mas em diversos lugares do país e de diversas categorias, foram deflagradas.

Conclusão

Após a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) ficou reconhecido e formalizado alguns fundamentais da pessoa humana. A Declaração defende valores como o direito ao trabalho, à vida, à liberdade, à segurança, à justiça, à cidadania, entre tantos outros.

“Mas durante o período de repressão militar no Brasil verificou-se a total falta dos direitos fundamentais, principalmente no tocante ao direito à liberdade, á informação e livre expressão do pensamento. Somente eram consideradas pessoas de bem aqueles que tinham carteira de trabalho assinada, sendo os demais rotulados pela polícia e pelo governo de comunistas” – Janaína Alcântara Vilela.

O fato é que o regime militar buscou limitar e destruir ações progressistas tanto na política quanto no meio sindical. A história mostra que essa repressão não foi capaz de calar os sindicatos, o movimento estudantil e tantos levantes que conduziram o país a sua redemocratização.

Foi com trabalho silencioso dentro das fábricas que a resistência se manteve. Foi a reorganização nacional, com greves e mobilizações, que levou os trabalhadores a contribuir para o fim de um regime ditatorial no Brasil. Não há motivo para comemorar o golpe de 1964. O que se comemora, quando o assunto é ditadura militar, é o seu fim.  

Por Regis Luís Cardoso (com informações via “O papel do direito do trabalho e dos sindicatos na época da ditadura militar” – Janaína Alcântara Vilela).

Referências Bibliográficas:

(BORGES, 2009) => BORGES, Lúcio Machado. Ditadura militar no Brasil (1964-1985).

(ALVES, 1985, p.205-206) => ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984).

(DOSSIÊ DITADURA, 2009, p.620) => COMISSÃO DE FAMILIARES de mortos e desaparecidos. Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985).

(SANTANA, 2008) => SANTANA, Marco Aurélio. Ditadura Militar e resistência operária:o movimento sindical brasileiro do golpe à transição democrática

(KRISCHKE, 1982, p. 34) => KRISCHKE, Paulo José. Brasil: do milagre à abertura.

You may also like...