“Não sou professora, mas sim ‘perturbadora’”
“Toda sociedade que forma de maneira mais sofisticada seus cidadãos, oferece maior autonomia, maior número de ferramentas de liberdade, emancipação e capacidade criativa” – do filósofo e escritor brasileiro Mario Sergio Cortella
Entendendo que o empoderamento e a independência de uma sociedade estão diretamente ligados a ciência e a educação, conversamos com a professora de Física Eliana Lopes, que trabalha no Colégio Estadual Clotário Portugal, em Campo Largo. Foi ela, ao lado de um grupo de estudantes, que colocou a capital da louça no mapa da ciência brasileira, no fim de 2018. Eles fizeram algo inédito na cidade: os campolarguenses ficaram em quarto lugar, nível nacional, no projeto “Garatéa – Uma Missão Lunar”, que selecionou três trabalhos que foram enviados à NASA.
Na equipe estavam os alunos (*foto) Luiz Gustavo de Oliveira Nascimento, Nathalia Marina de Lara, Diogo Felipe Merchiori e Thiago Augusto Nogueira de Andrade (*em pé), além de Ana Caroline Zeribeto e a professora Eliana Lopes (*sentadas). Também colaboraram a professora de Biologia, Beatriz Zanetti, e de Ciências, Joelma Custódio.
O detalhe é que, após o grande feito, os dizeres de Cortella, principalmente sobre “emancipação e capacidade criativa”, se fizeram verdade. “A primeira vez que eu falei que era um projeto em parceria com a NASA, alguns torceram o nariz, “capaz que o Clotário vai chegar lá”, disseram. Agora, os estudantes se sentem empoderados em participar das novas edições”, contou Eliana Lopes, professora, mãe, dirigente sindical e militante pela educação pública e de qualidade.
::Como foi a caminhada até ficar entre os quatro melhores trabalhos científicos brasileiros no projeto “Garatéa – Uma Missão Lunar”?
Eliana Lopes: Inicialmente fui às salas e expliquei como seria a proposta e se os estudantes gostariam de formar equipes. A escola teve um bom número de inscritos, mas, ao longo dos oito encontros propostos, houve baixas. Terminamos com duas equipes e conseguimos escrever bons projetos, que competiram entre si. O melhor, segundo uma comissão montada por professores, foi enviado para seletiva nacional.
::Os estudantes compraram a ideia facilmente?
EL: No Clotário Portugal há muitos estudantes interessados em propostas diferentes, mas, ainda assim, precisamos incentivar mais a participação. No entanto, com o bom resultado que tivemos, 4º lugar no Brasil, vários estudantes se interessaram pelo que foi desenvolvido e a procura por organizar novas equipe para 2019 está sendo muito grande. A primeira vez que eu falei que era um projeto em parceria com a NASA, alguns torceram o nariz, “capaz que o Clotário vai chegar lá”, disseram. Agora os estudantes se sentem empoderados e motivados em participar das novas edições.
::Qual sua opinião sobre a atuação do governo federal e também estadual quando o assunto é educação e ciência?
EL: A gente não consegue nem se posicionar sobre a atuação do atual governo federal, porque não há um projeto. Não há propostas para a educação. Então não tem como avaliar quais são os encaminhamentos dessa gestão e, por isso, não tenho subsídios para fundamentar uma resposta. Eu defendo uma proposta educacional que priorize a formação crítica do estudante, a emancipação, e ela não está alinhada a agenda liberal proposta por esse governo. Quando olhamos as pessoas que o atual presidente chamou para compor os ministérios, em especial, o da educação, é possível identificar que educação de qualidade e incentivo à pesquisa não serão prioridade, o que configura um cenário desolador.
Nós, educadores progressistas, fazemos algumas suposições do que nos espera com esse governo dentro da visão econômica que eles expõem, mas é tudo muito incerto. A nível Paraná, nós temos alguém, que não é da nossa área, como Secretário de Educação, tentando transformar as escolas em algo extremamente engessado, norteado por estatísticas e índices, com visão meritocrática, deixando de lado o mais importante: a formação dos estudantes.
::Como você avalia a vida e a valorização de um professor no Brasil?
EL: Estamos passando por um momento muito triste. De um grande descrédito em torno do trabalho do professor. O atual grupo que está no poder conseguiu transformar em vilão, justamente quem favorece que a sociedade se liberte da alienação. No ano passado estávamos sendo ameaçados por grupos da Escola Sem Partido. Era iniciar uma discussão ou uma atividade que envolvesse posicionamento político, que logo aparecia alguém para filmar, fotografar, com o objetivo de denunciar a grupos que criminalizavam o trabalho docente.
O desprestígio dos profissionais da educação está ligado ao resultado das últimas eleições. As pessoas acreditavam em mensagens enviadas em redes sociais e aplicativos e atacavam professores como se fossem seus inimigos. Para mim, que sou professora há 20 anos, um cenário jamais visto que exige dos professores um trabalho ainda mais intenso de desconstrução de tantos absurdos usados para a manipulação da sociedade. Como representante sindical de Campo Largo, amparei vários professores que sofreram perseguições; e como nossa categoria é desvalorizada pelos governantes, tudo endossa esse pensamento de atacar educadores.
Ser professor no Brasil está cada dia mais desafiador. São salas super lotadas, carga horária da disciplina muito aquém do necessário para realizar um bom trabalho com os estudantes, formação continuada dos profissionais da educação desconexa da realidade escolar, burocracias superpostas ao ensino, hora-atividade reduzida que vem associada a um número maior de turmas que precisamos assumir, salários congelados, ou seja, total falta de incentivo e de condições adequadas de trabalho.
::Recentemente houve o massacre em Suzano. Além de uma sequência de fatos perturbadores que atentam para a questão da violência nas escolas. Como esse tema é tratado em sala de aula?
EL: Na verdade o tema “violência nas escolas” raramente é trabalhado nas escolas, assim como muitos outros. Em geral, há uma preocupação em passar conteúdos para os estudantes, ainda que não façam sentido a eles. As questões mais emergências, que gritam em nossa sociedade, são secundárias, quando deveriam ser primárias. Nós, professores deveríamos partir de questões da nossa realidade para conseguir construir conceitos e conhecimentos que realmente façam a diferença na vida dos estudantes. Nesse novo governo estadual, pela semana pedagógica do início do ano, já ficou evidente que problematizar situações como a da violência dentro das escolas, também não será prioridade, mas sim, índices, números, indicadores, como o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), SAEP (Sistema de Avaliação da Educação Básica do Paraná), dentre outros.
Interessante que cada vez que a mídia noticia algo trágico ou inovador, no dia seguinte os estudantes buscam dialogar sobre, questionar alguns professores sobre seus posicionamentos, mas os currículos, os cronogramas, os calendários de início e fim de trimestre, agora amarrados pelo livro de registro online, inibem esses momentos que deveriam ser o carro chefe do trabalho escolar. Muitas vezes precisamos dizer aos estudantes para nos procurar em momentos de hora-atividade para aprofundar algumas conversas, para não atrasar as burocracias que nos são impostas.
::Como professora, qual sua opinião sobre esses casos de atiradores nas escolas?
EL: Não é de agora que casos como esse acontecem, mas com esse atual governo, pensamentos desumanos, fascistas, preconceituosos ganharam passaporte para agir com certa naturalidade. O discurso de ódio do atual presidente e do seu clã está totalmente alinhado com a tragédia que vimos em Suzano. Nas universidades está instalado um clima do mais absoluto medo, com ameaça de atiradores e bombas, sendo que muitas pessoas estão se divertindo em criar pânico. Esse é o comportamento que vem alinhado ao atual presidente e sua corja, que acham engraçado fazer ‘arminha’ com a mão e propagar o ódio. Vínhamos, em um passado próximo, de um momento em que a desconstrução do machismo, da homofobia e de várias outras pautas caminhava a passos lentos, mas caminhava. Agora, passamos por um momento de extremo retrocesso, em que um presidente e sua corja empoderam pessoas a agir de uma forma totalmente desumana e totalitária.
::Qual sua opinião sobre priorizar pautas sobre costumes e religião nas escolas? Acha que isso vai desvalorizar ainda mais a pesquisa e a ciência? Acredita que estamos regredindo nesse sentido?
EL: Acredito que estamos passando por um retrocesso perigoso que pode nos custar muito tempo no futuro para reorganizar tudo. Ciência e religião não se contrapõem porque uma não substitui a outra. Eu sou uma pesquisadora, sou professora da área das Ciências Naturais e, ainda assim, tenho a minha religiosidade, as minhas crenças, pois uma não elimina a outra. No entanto, escola é lugar das ciências. Não tem como misturar. A escola é lugar de pesquisar, discordar, refletir, ousar, confrontar.
Já no caso da religião o que nos é apresentado é um conjunto de dogmas e contra dogmas não há argumentos. Então, cada coisa no seu lugar! O ensino das ciências tem um trabalho muito grande em torno da pesquisa, da reflexão, do processo argumentativo que cai por terra quando misturada com a religião. Resumindo, vejo o cenário atual com extrema preocupação: priorizar civismo, obediência, religiosidade, passividade, disciplina burra nas escolas vai comprometer a formação de estudantes críticos, protagonistas, capazes de envolvimento e posicionamento na sociedade diante dos mais variados problemas com que vão se deparar.
::Sobre essa questão que beira a fiscalização ideológica: você acha que chegamos a esse ponto por falha da própria educação brasileira?
EL: Acredito que não foi falha da educação. Havia um projeto muito claro para que o poder fosse tomado pelo atual grupo de extrema direita e ele foi subestimado. Primeiro criminalizaram os educadores, favoreceram seu descrédito junto à sociedade e utilizaram do viés democrático que vinha se instalando nas escolas para manipular os estudantes. Agora, cabe a nós professores, intensificarmos o trabalho de desconstrução dos desmandos com os quais estamos nos deparando diariamente nesse governo.
Hoje, infelizmente, a gente vê em sala de aula alguns adolescentes, que deveriam ter a rebeldia dentro deles, extremamente alienados. Isso nos preocupa. Parece que estão num sono… Parece que tem um feitiço nas pessoas, porque não é possível, diante de tantos fatos, elas continuarem, como um mantra, defendendo tantas bobagens que são faladas.
::Para finalizar: o que é ser professora para você?
EL: Pra mim é oportunizar que o estudante seja mais. Como nos ensinou Paulo Freire: “ser mais”. Então, ser professor é uma tarefa muito importante na vida dos estudantes. É ele que vai dar subsídios para os jovens, sozinhos, entenderem a importância de se posicionar, de ter atitude, de ser crítico mediante a tanta coisa absurda que já está naturalizada na gente. Eu brinco com meus estudantes, digo que não sou professora, mas sim ‘perturbadora’. Fico tentando ‘perturbar’ a mente deles o tempo todo. Tirá-los da zona de conforto. Não só levar conteúdo, mas ensinar a pesquisar, refletir, analisar o contexto e principalmente tentar desenvolver com eles valores humanos.
Hoje, muitas pessoas estão cada vez menos humanas e cada vez mais coisificadas. Os valores fraternos estão sendo deixados de lado, sendo substituídos pelo individualismo, pelo egoísmo. Como professora, me sinto na obrigação de mexer com a mente deles, fazer com que eles desacreditem em tudo, incentivo que pesquisem, leiam, reflitam e critiquem, mas sempre com empatia, pensando no outro, na dor do outro, no respeito com o diferente.
Quando resolvo algum problema em sala de aula com os estudantes, sempre questiono: “e aí, será que isto está mesmo certo, pessoal?”, porque eu quero que eles duvidem de mim, mas sempre com embasamento teórico. Tento despertar os estudantes para que eles saibam se posicionar mediante aos absurdos que irão enfrentar na sociedade.
::Algo que você gostaria de acrescentar e que não perguntamos?
EL: Cada dia eu me preocupo, mas também me realizo mais na minha profissão. É nítida a desconstrução que eu me proporcionei ao longo de vinte anos lecionando. Quando me lembro do início da carreira e agora, já não me reconheço mais. Estou cada vez mais satisfeita, porque estou recebendo o resultado vindo dos estudantes que eu jamais imaginei. Sinto que consigo mexer com a escola em parceria com outros professores alinhados com as concepções que defendo. Quando tem alguma pauta polêmica os alunos vêm até mim querendo debater. Eles me têm como uma referência em assuntos que mexem com a sociedade, tanto para concordar, como para discordar e isso é uma satisfação sem igual.
Esses dias, alguns alunos me procuraram, foi iniciativa deles, para montar um grupo de astronomia; ou seja, aprender sobre o assunto, debater e fazer pesquisa. Eles sabem que isso não será atrelado a nota, será feito em períodos de contra turno, demandando tempo e disposição. E quando vieram me pedir, eu até me emocionei. Vi que estou conseguindo mexer com eles, fazer deles os protagonistas de sua própria vida. E isso pra mim é totalmente impar!
Estou numa fase, apesar de todo esse cenário, que me realizo com as sementes que venho plantando devagar e que agora estão começando a germinar. Fico na expectativa para que tenhamos frutos maravilhosos no futuro.
Por Regis Luís Cardoso.